Há 84 anos (1936), no dia 12 de julho, uma corrida internacional de automóveis seria capa de jornais e manchetes em emissoras de rádio pelo Brasil. O Primeiro Grande Prêmio Cidade de São Paulo, disputado em um circuito de rua onde hoje estão os Jardins Europa e América, regiões nobres do município. O autódromo José Carlos Pace, em Interlagos, na zona sul, só seria inaugurado em 1940.
A prova foi transmitida por emissoras de rádio das capitais paulista e fluminense. Exatamente como agora, o dia 12 caiu em um domingo e cerca de 7 mil pessoas se acotovelavam pelas arquibancadas, montadas ao longo das avenidas. A corrida teve sessenta voltas perfazendo 255 quilômetros.
No fim da prova um gravíssimo acidente envolveu os carros da pilota francesa Hellé Nice e do brasileiro Manoel Teffé. O resultado foi desastroso: seis espectadores mortos e 32 feridos, sendo 13 em estado grave. Eram tempos onde a segurança não tinha prioridade e não contava com a tecnologia.
Faltavam poucas voltas para o fim da competição quando a única mulher a guiar um carro naquele circuito apertou o ritmo e chegou muito próximo do piloto brasileiro, provocando o delírio do público. Hellé executou manobras ágeis virando o volante para lá e para cá, demonstrando segurança.
A terceira posição seria disputada de forma mortalmente acirrada. Manoel Teffé fechou a porta para a passagem de Hellé, porém, a francesa conseguiu grudar nele. Ao mesmo tempo, o italiano Carlo Pintacuda cruzou a linha de chegada e venceu a prova depois de 2h25 de corrida.
Uma multidão invadiu a pista porque em alguns trechos havia apenas uma grossa corda ou sacos de areia que separavam carros e espectadores. De repente um homem saltou na frente dos carros que vinham em disputa. Os veículos se tocaram e o Alfa Romeo de Hellé Nice se levantou do chão para seu corpo ser atirado fora do carro.
Por mais estranho que pareça, o corpo da pilota caiu sobre os assistentes da corrida, matando um deles, mas salvando a vida da francesa que teve o impacto amortecido. Destino diferente teve o torcedor afoito que invadiu a pista: foi atropelado e teve morte instantânea.
O carro da francesa ainda rodopiou e acertou parte dos espectadores. Desacordada, Hellé foi levada para um hospital e por lá ficou por mais de um mês. Após receber alta, continuou no Brasil até regressar de navio para a França, no dia em 1º de setembro de 1936.
Afinal, quem foi Hélle Nice?
Mariette Hélène Delangle era uma mulher à frente do seu tempo. Nascida em 1900 em um povoado perto de Paris, na França, a menina queria mais. Com 16 anos mudou-se para a efervescente “cidade luz” onde adotou o nome artístico de Helene de Nice. Foi dançarina de cabaré, modelo que posava nua, bailarina e atriz.
Com o seu talento, beleza e audácia Hellé encantou homens ricos e poderosos, mas a opção pela independência não a levou ao casamento. Melhor assim. Nos anos 1920 o automobilismo francês estava em ebulição com a organização de importantes corridas, então, ela resolveu se aventurar em um mundo dominado pelo sexo masculino.
A pilota teve importantes conquistas em seu país, mas foi correr nos Estados Unidos onde, em 1930, se tornou a primeira mulher a pilotar nos arriscados circuitos ovais. Hellé foi mais longe e correu pela famosa marca Bugatti, além de ter competido na importante prova francesa Rallye Automobile,de Monte-Carlo.
Depois daquele acidente no Brasil, no entanto, Hellé não conseguiu acertar sua vida apesar de ter obtido feitos históricos como os 25 recordes quebrados em uma prova francesa de endurance (corrida de resistência) em 1937. A bordo de um Ford V-8 ela rodou 240 horas, revezou a direção com outras três pilotas e derrubou recordes ligados ao tempo de conclusão, à distância e à média de velocidade da prova.
O destino, porém, não lhe reservou um final heroico. Hellé Nice morreu aos 84 anos, anônima e com grande dificuldade financeira. Nem os seus vizinhos sabiam que viviam bem próximos de uma das pioneiras das corridas automobilísticas no mundo.
Marcelo Cardoso é jornalista e professor universitário. Pesquisa o jornalismo, o rádio e o podcast em suas várias interfaces com o esporte.
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Para conhecer mais sobre o tema:
A derradeira corrida de Hellé Nice (Marcelo Cardoso). Contos do Automobilismo Brasileiro (Rafael Duarte Oliveira Venancio). Darda Editora, 2016.
Blog Miranda Seymour: The Bugatti Queen. Disponível em: <http://www.mirandaseymour.com/bugatti.htm>.
Jornal ‘A noite’. 13 de julho de 1936. “A morte no rastro da victoria”. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/348970_03/33188?pesq=%22helle%20nice%22>.